eu que costumava ver pela parede, me acostumei ao nevoeiro a um palmo do nariz. eu que costumava harmonizar notas perdidas, me acostumei aos desafinos dos meus gritos. eu que costumava colorir com dentes e braços, me acostumei a dias cinzas e a cinza ser. eu que costumava esbanjar sangue... sinto-me tentada a acostumar-me a essa casa fria...
mas eu, que costumava acostumar-me a tudo, aprendi a cavar túneis. aprendi a ressurgir.
não há mais lágrima, apenas tinta. sim, eu choro tinta! porque desejo ardentemente o que mais temo. mas dia a dia faço as pazes com a ausência.
e enquanto estou aqui, vou caiando minhas dores com silêncios doídos e palavras enfeitadas. e enquanto finjo sanidade minha loucura cresce, assusta, domina... porque a loucura que desejo não é essa incompleta... sem propósito. e toda essa cor é só cortina. e todo esse som é só barulho. e a poesia é o grito.
Composta pelos argentinos Ariel Ramírez e Félix Luna, e interpretada aqui por Mercedes Sosa, esta canção que já me arrepiava corpo e alma antes mesmo de conhecer sua história, é uma homenagem à poetisa argentina Alfonsina Storni, que suicidou-se aos 46 anos de idade, em 23 de outubro de 1938, fazendo um caminho sem volta para dentro do mar da cidade de Mar Del Plata. A seguir, o poema que Alfonsina escreveu pra se despedir do mundo:
Voy a Dormir
Dientes de flores, confía de rocío, manos de hierbas, tú, nodriza fina, tenme puestas las sábanas terrosas y el edredón de musgos escardados.
Voy a dormir, nodriza mía, acuéstame. Pónme una lámpara a la cabecera, una constelación, la que te guste, todas son buenas; bájala un poquito.
Déjame sola: oyes romper los brotes, te acuna un pie celeste desde arriba y un pájaro te traza unos compases para que te olvides. Gracias... Ah, un encargo, si él llama nuevamente por teléfono le dices que no insista, que he salido...
de que me adianta tanta alma? porque nada me pertence e a ninguém pertenço a não ser àquele que me ama de verdade... de que me serve tanto ardor? porque nasci e vivo onde sonhos não são molas... são enfeites! de que me serve tanta dor? beleza não mata minha fome. e assim vamos: inventando porquês pra por quês irrespondíveis e fazendo dessa a nossa casa, o nosso abrigo. mas rebelde nasci e ainda sou! e com minha alma, ardor e fome, tomo meu rumo pra outras bandas! porque a base dessa casa é lama, e não há quem vença limpá-la!